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Maria Bonomi


Vejo no ateliê de Maria Bonomi, ao vivo, a gravura que fecha, pela data de produção, a seleção de suas obras apresentada neste caderno: A Ponte, de 2011, em generosos 179x267cm, uma obra-prima no preciso sentido da palavra.

Vê-la, em meio a tantas outras peças magníficas, faz bem aos olhos e à alma - e não posso deixar de lamentar a sorte dos que só conhecerão a arte de Maria por meio deste caderno e deste Relatório que lhes dá, é inevitável, uma ideia menor de sua obra. Este caderno o leitor segura nas mãos; uma gravura de Maria, ao vivo, segura o observador nas mãos da arte. Uma arte do tamanho do mundo. Maria redefiniu a gravura ao recusar o cenário intimista, tímido e sombrio da gravura naturalista, quase doloroso, para dar a esta linguagem, com a ampla dimensão e a cor, as várias perspectivas de um mundo excitante.

Em mais de um campo da arte, a ode é a opção do artista para expressar seu prazer e entusiasmo pela arte e pela vida: essa mesma palavra define com eloquência a obra de Maria Bonomi, uma ode continuada à vida e ao mundo, algo que fica mais evidente no cenário informal de seu ateliê do que nas exposições regradas e demasiado bem comportadas de museus e galerias.

Uma ponte para o contemporâneo. As gravuras de Maria abriram para mim uma das portas de entrada no contemporâneo quando comecei a me entender com a arte. Primeiro, por suas dimensões impactantes. Tamanho importa. Mas não apenas isso me atraiu: o conteúdo das obras, apropriado a suas medidas físicas incomuns, propunha uma nova relação com a arte da gravura e, por meio dela, com o mundo ao redor, afinal o que importa.

Com Maria, a gravura não era mais apenas um modo do desenho retratando seu objeto em duas dimensões planas nas quais a profundidade é apenas representação: fugindo à obsessão fotográfica, Maria explorava o volume e a matéria da ideia desvinculada do real e posta, primeiro, na madeira ou na pedra e, em seguida, no papel. Por uma operação de maestria, esse volume material, que no papel não tem como deixar de ser representado, quase assumia uma materialidade palpável na dobra das linhas em todas as direções, para trás, para frente, para os lados. A busca do volume e da perspectiva, que parte da arte contemporânea julgou esgotada, é tão intensa em Maria que sua obra derivou naturalmente do papel para o mundo real em três e quatro dimensões: suas formas assumiram lugar no espaço, transformaram-se em coisas, objetos, um portal, uma esfera vazada, uma escultura. Em todas elas, porém, permanece e é perceptível a verdade do sulco, palavra com que ela mesma resume sua arte, uma verdade explorada ao máximo tanto no papel plano como no metal em três dimensões. Ou, claro, na madeira que ela trabalha como meio para chegar ao papel e que se revela uma obra de arte em si mesma e por direito próprio em sua materialidade imponente e como se ainda viva apesar de cortada.

Uma ponte para o belo. Maria não teme o belo. Este é um ponto importante. A Ponte, com suas sugestões figurativas raras num conjunto fortemente abstrato, e como tantas outras de suas peças, é de uma beleza arrebatadora. O efeito cerebral da forma friamente calculada e contida, com a qual Maria cruzou lanças no passado da prática da arte no Brasil, não a move. Sua obra tem de ser bela. E sensual. Essa palavra não deve ser aqui entendida de modo meramente retórico: com Maria, sensual quer dizer de fato sensualidade, uma excitação dos sentidos que começa no olho e desliza irresistivelmente para a mão e a vontade de tocar, de percorrer com os dedos esses sulcos que o olho vê. No museu não se pode tocar na obra, grave equívoco com força de lei; mas no ateliê, em contato íntimo com a peça, o toque é possível e revelador.

Sua opção pelo belo e pelo sensual, que é o modo do belo a quente, é decisiva e é importante destacá-la num momento em que parte considerável da arte contemporânea escolhe a neutralidade estética quando não a frieza absoluta do conceito amparada na negação da matéria. O que a obra de Maria mostra é que ainda há muito espaço para a matéria em arte. E para a materialização do belo. Nessa perspectiva, a obra de Maria Bonomi é uma oferta, um regalo de uma importância que não pode ser menosprezada.

Uma ponte para outra ética. A arte de Maria está literalmente à flor da pele, da pele da madeira, da pedra, do metal e do papel; mas ela não é uma artista da superfície rasa. Numa entrevista distante no tempo, usou uma expressão forte para designar aquilo que não aceita: a preguiça moral. Não a tolera, seja a do artista que se repete ou a da instituição que se esquece dos valores centrais da arte para se entregar aos fáceis (e rentáveis) interesses do pequeno mundo dos negócios e do brilho tolo das fotos de public relations clicadas para as colunas sociais. Brigou com a Bienal de São Paulo, que no entanto amava e defendia por trazer o novo ao país, quando a viu perder o rumo; recusou a censura armada pela ditadura iniciada em 1964 e que, com a obsessão do dirigismo ideológico de todos os autoritarismos em todas as suas cores políticas, cercava e espremia a arte; defendeu com palavras e atos a experimentação que via nos outros; em mais de uma ocasião poderia ter ficado calada por comodismo ou interesse mas não o fez. Sua biografia vai, assim, além de sua arte, no entanto bem ampla, para incluir sua vida: não é algo comum. Se suas obras são de grande formato é porque, ela mesma diz, as narrativas que têm para contar são vastas. E requerem uma ética maior.

Uma ponte para o coletivo. Estas gravuras de grandes dimensões são um convite à apreciação a dois, a três, a cem, elas escapam da esfera do indi- vidual, do gozo isolado. Com elas não se está mais numa sala escura e protegida, mas no meio de um efeito de mundo. A Maria, porém, não bastava essa passagem operada apenas dentro do espaço público habitual da gravura que é a sala do museu: a ética de sua estética lhe propôs a gravura como companheira da arquitetura, da arquitetura de exteriores e de interiores, um outro nome para a arte pública que toma paredes de prédios, corredores do metrô, jardins, átrios. A gravura agora não é só grande, ela envolve - sem nunca trair o programa central da artista: o sulco é o mesmo e continua no centro e em foco, apenas sai à rua.

Uma ponte para o conhecimento. Uma obra de Maria Bonomi é para ser primeiro sentida, como toda arte. Mas é também um caminho para o conhecimento - pela exploração da matéria e da forma da arte e do mundo, pela investigação da técnica correta e expressiva, pelo compromisso ético com a obra e, outra vez, com o mundo. Esse aspecto múltiplo não é um resíduo de sua atividade: é seu princípio e seu fim, o outro lado da mesma moeda cuja face visível é a obra acabada. E aqui é preciso pôr em relevo o sentido da presença das imagens de sua obra, das imagens da arte, num relatório técnico da FAPESP. A questão não é menor, nem fortuita. Escolhendo a arte para dar vida adicional a seus relatórios, não para ilustrá-los, a FAPESP reafirma de modo explícito o lugar da arte na universidade e na pesquisa, conquistado a duras penas ao longo do terço final do século passado - quer dizer, ontem, hoje pela manhã - e por cima de um duro contingente de preconceitos e ideias feitas. Com sua escolha, e sem precisar dizê-lo, a FAPESP endossa com clareza e firmeza a tese de Beethoven: arte e ciência são as expressões maiores do espírito humano. Quando a arte é de Maria, não há dúvida alguma.

Pontes não apenas conectam pontos distantes uns dos outros: são signo da esperança. Surpreendo-me recorrendo, depois de muito tempo, a essa ideia, esperança, ao falar da arte. Jorge Luis Borges um dia notou que o romance contemporâneo é o romance da derrota, do fracasso e da desilusão, o romance do herói problemático, do não herói. Boa parte das artes visuais oferece da vida e do mundo esse mesmo retrato. A obra de Maria Bonomi, no entanto, aponta para esse outro e instituinte vetor da arte que é a esperança. Agora compreendo melhor por que saí do ateliê da artista me sentindo bem e vivo.


Teixeira Coelho


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